terça-feira, 21 de abril de 2015

Sarah e a Lógica

Cena 1:
Estava com minha sobrinha na sala em um breve diálogo:
- Tio, você gosta de manga?
- Não, não gosto.
- Tio, você gosta de maracujá?
- Não, não gosto.
- Tio, você gosta de maça?
- Não, não gosto.
- Tio... você não gosta de fruta?

Ele perguntou exatos três exemplos antes de generalizar a sua descoberta, o mesmo número de fatos aleatórios que ele é capaz de lembrar em sua idade. Aplicou um princípio de indução e elaborou uma hipótese falseável.

Pessoas com o triplo da idade dela ou mesmo com 10 vezes a idade dela se comportam da mesma maneira, usualmente com três exemplos. (Apesar de pessoas adultas normais serem capazes de memorizar pelo menos 7 fatos aleatórios).

É uma hipótese de trabalho bastante boa, embora na verdade eu goste de algumas frutas em determinadas apresentações. O enunciado "você não gosta de frutas cruas" seria totalmente verdadeiro.



Cena 2:
Na noite anterior ao episódio acima assisti ao filme The Oxford Murders, (http://www.imdb.com/title/tt0488604/). Um enredo de serial killer envolvendo lógica matemática e apresentando em conflito os dois pontos de vista, naturalista e cético, um interpretado pelo Frodo de senhor dos anéis e o outro pelo excelente John Hurt.

O pano de fundo matemático era o trabalho de Wittgenstein sobre lógica matemática e conhecimento filosófico, com uma certa mistura das duas visões, antes e depois do Tractatus.

Existem frases ótimas para serem citadas no mundo, bordões cheios de sabedoria e também cheios de falsidade.

Na natureza, tudo que é não é proibido é obrigatório.

No direito privado, o que não é expressamente proibido é permitido.

No direito público, todo que não é expressamente permitido é proibido.

Se Deus não existe, tudo é permitido.

O que se pode dizer pode ser dito claramente; e aquilo que não se pode falar tem de ficar no silêncio.

Parece-nos uma característica do raciocínio humano observar padrões. Detestamos o caos, o acaso, a probabilidade. Se confrontados com qualquer sequência de números, procuramos imediatamente um padrão com nossas funções cognitivas mais elevadas. Se formos defrontados com os números da loteria milionária do final de semana, surpreendemo-nos procurando achar regularidades, se nos são apresentadas sequências de números:

(I): 8, 6, 9, 23, 87, ...

(II): 1, 4, 1, 5, 9, ...

Queremos saber o próximo. Note, contudo, que nas sequências acima jã nos são dadas as reticências, a indicação de que existe um próximo! 

Com um pouco de tempo todos podem se convencer de que o próximo número da primeira sequência é 429 e da segunda sequência é 2.

Essa característica humana é muito menos racional do que parece. A nossa vida depende dessa característica e nosso cérebro é hardwired para o descobrimento de padrões. Hoje, na verdade, esse conhecimento é utilizado para a construção de dispositivos eletrônicos adaptáveis e inteligência artificial. Essa é a característica que nos permite viver uma vida normal, nos enganando o tempo todo.

Todos os nossos órgãos sensoriais se baseiam em realizar uma amostra do ambiente e garantir que o cérebro seja capaz de montar a sensação adequadamente, preenchendo as falhas de nossa detecção. Assim podemos ver em 3D, ter noção de profundidade, determinar a distância de objetos, saber a textura de uma superfície, se estamos em pé ou deitados... também por isso nos enganamos tanto sobre o mundo como ele realmente é e nos divertimos tanto com jogos de ilusão que exploram essa nossa característica de lidar com o comum esperando o usual. Isso nada tem a ver com nossas habilidades de raciocínio, tem a ver com as funções do cérebro inconsciente e, principalmente, com a memória.

Para erradicar o acaso temos a ciência, essa grande produtora de certezas, a fonte das sequências de explicação... Temos excelentes modelos científicos, esses necessitaram de nossas funções cognitivas mais elevadas, da linguagem (para cujo desenvolvimento é fundamental o erro construtivo piagetiano da hiperregularização da conjugação dos verbos). Um cientista teórico se contenta em tomar de um fenômeno apenas o que é essencial e dar-lhe uma explicação em termos de conceitos abstratos que se alicerçam em outros de forma que o conhecimento de um gere um caráter preditivo em outro. 

Para o cientista aplicado não basta saber qual o próximo número da sequência, é necessário compreender o que a situação tem de particular e seguir um caminho que invariavelmente consiste em tentativa e erro, porque a realidade crua não tem nenhum dos padrões que gostaríamos. Assim, temos uma ciência de padrões que os obtém em algo que não existe na natureza aplicado a algo que existe na natureza e que necessita de lidar com o acaso a cada instante.  

Fingimos que não é assim e estamos satisfeitos com explicações lógicas para as coisas. Observe que as explicações existem, o fato relevante é que o componente do acaso simplesmente continua lá, não foi erradicado como gostaríamos de acreditar. É com detalhes não calculáveis que temos que lidar ao tentar construir um motor mais eficiente, para o qual a ciência já está estabelecida a mais de 2 séculos ou quando explicamos o sistema solar, com ciência estabelecida a 400 anos mas ainda assim um sistema caótico.

Como se dá tamanha ilusão? 

A Psicologia comportamental já tem a resposta para isso há bastante tempo. O reforço positivo ou o negativo, por si só, são sempre piores do que a sequência mista aleatória dos dois. O ratinho que quer a comida que recebe da alavanca que as vezes da choque, ele inventa para si teorias que justificam que ele deve continuar tentando porque existe uma teoria de regularidade!

A regularidade das coisas nos dá um sentimento de imortalidade que precisamos para viver. A morte abrupta é o acaso que se apresenta aos nossos olhos e é o que tentamos evitar com explicações.

Ainda que nossas explicações tenham tornado o mundo um lugar melhor para se viver, que a ciência e a tecnologia tenham prosperado imensamente, o medo interno do caos é o mesmo, como também são certas características de nossa cognição. A nossa hiperregularização não é boa ou má, é um fato dado de nosso cérebro. 

Não é possível discutir aspectos sobre o bem ou sobre a moral sem ter em mente algumas dessas características e saber as consequências que existem relacionadas a maneira como pensamos. Por mais que queiramos, vamos enxergar as coisas com uma visão estereoscópica como fazemos e também vamos formar alguns valores que tem como substrato elementos que são inerentes ao nosso pensamento e outros comportamentos que são aprendidos e codificados tão profundamente como a linguagem.

O uso das faculdades mais altas de raciocínio pode permitir analisar, mas não pode alterar significativamente o nosso comportamento uma vez consolidado, pode apenas aumentar o nosso desempenho crítico.

A maneira como lidamos com os nossos próximos depende disso e a sociedade depende da educação de nossas crianças para que consigamos uma sociedade mais justa. O preconceito de raça, cor, religião, gênero, sexo, classe social, a maneira como usamos (ou não) a imposição do grito ou da violência, de nossas ferramentas de linguagem não-verbais, tudo isso faz parte do arcabouço formal que será introjetado na criança e utilizado como sua linguagem e, a partir da linguagem ela compreende o mundo, como nós o fazemos. 

Queremos uma sequência em que o mundo é injusto e violento? Queremos uma sequência em que o próximo número é o preconceito se repetindo infinitamente? Para que um pouco de verdade seja possível em nosso mundo temos que modificar a maneira como vemos o mundo e transformar até essa verdade como um dos mecanismos de auto-enganação de nossos cérebros. Ao ver crianças de colo os adultos sorriem, não porque querem, mas porque seus cérebros são assim desenhados. 

É óbvio que não defendo nenhum experimento de engenharia social em larga escala, defendo a utilização do raciocínio para analisar também os momentos em que ciclos devem ser quebrados. Algumas regularizações são boas, outras não.

Nas duas sequências acima, uma delas é uma construção baseada em uma fórmula de números inteiros que pode ser descoberta observando-se os números mas que não tem nenhum significado em si mesmo. A segunda sequência é a sequência das casas decimais do número PI. A fórmula que fornece o n-ésimo dígito desse número foi construída apenas em 1995, embora o número PI remonte a antiquidade grega. As casas decimais de um número real são o mais próximo que conseguimos imaginar de um número aleatório, existem muito mais números na sequência II do que na sequência I, embora ambos sejam infinitos, a primeira sequência nasce de uma vontade de escrever uma fórmula e bem poderia parar em qualquer número, enquanto o segundo representa uma construção matemática muito específica que pode ser observada na natureza, ou pelo menos em nossa abstração do que é a natureza.

Como máquinas especialistas em padrões devemos ser capazes de identificá-los, deixarmo-nos levar por alguns deles em auto-engano útil mas também de manter um espírito suficientemente crítico para poder romper ciclos arbitrários que nos prejudicam, construindo uma sociedade melhor e, talvez, mais caótica. 

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