domingo, 10 de maio de 2015

A Cerveja e a Greve


(*Cuidado: Esse texto pode conter elementos politicamente incorretos. Use com discrição!)


A figura acima representa o Market Share das cervejarias no Brasil. Embora eu não tenha achado uma imagem mais atual, os números são essencialmente os mesmos para o ano de 2015.

É bastante diferente do que vemos nas prateleiras dos supermercados ou nos cardápios de bares e restaurantes simplesmente porque poucas companhias controlam grande número de marcas, ou produtos. Existe uma óbvia desproporção entre toda a concorrência e a gigantesca Ambev. Não vamos nos preocupar com isso, vamos tomar um case study com uma das três pequenas.

A empresa Brasil Kirin tem um lucro bruto anual superior a R$ 1 Bilhão, equivalente ao orçamento das maiores Universidades Federais. Ela é dona de marcas populares como Schin, Nova Schin, Devassa, e marcas premium como Eisenbahn e Baden Baden.

Façamos um exercício mental e consideremos a cessação da prestação do serviço de entrega dessa empresa. Em outras palavras, imaginemos as consequências de uma greve. Certamente pode haver motivos vários para uma suposta greve, no momento sugiro que sigamos a ótica do cliente perante o fenômeno.


É lícito imaginar que a maioria dos consumidores de cerveja estará muito pouco preocupado com as condições de trabalho ou salariais da empresa cujo nome ele sequer conhece. Pode bem ser verdade que a empresa utilize mão de obra escrava contrabandeada da indonésia, matérias horríveis do Jornal Nacional, mas o cliente em geral não vai associar a empresa ou nome da cerveja, ou vai esquecer disso quando estiver na mesa de bar com os amigos.

Vou escrever mais de uma vez aqui, a Lógica de Mercado é pervasiva, as relações são de clientes e prestadores de serviço.

Os consumidores de cervejas populares vão notar a falta da bebida, reclamar um pouco talvez, mas não são consumidores exigentes, os quesitos relevantes mesmo são o preço e a temperatura. Inevitavelmente esses consumidores vão procurar outra cerveja e quem for gigante no ramo ganha vantagem no novo nicho de mercado que surgiu (os órfãos da Schin, por assim dizer), simplesmente porque pode fazer uma estratégia de marketing e preço agressiva. Sem dúvida, para esse mercado vai ser importante destacar nas peças publicitárias que se entrega o produto sempre no prazo!

Os consumidores das cervejas premium o fazem por um treinamento próprio, porque conhecem o produto, a temperatura correta de cada tipo, as notas distintivas de seus sabores. Esses consumidores apreciam o produto por sua diferença e conhecem essa diferença porque experimentam diversos tipos, dessarte lamentarão a falta de uma das modalidades de paladar, mas tem ao seu alcance tamanha diversidade que seguirão a sua vida sem nenhum problema, com as cervejas alemãs, belgas, tchecas, americanas, inglesas, Lager, Ale, Trapiche, Bock... até mesmo fazendo as suas próprias experiências em home brewing que está ficando popular nesse mercado. Os clientes gourmet são independentes da marca por abundância de mercado.

Concluímos:
  • A paralisação das atividades é extremamente danosa para a empresa minoritária.
  • A paralisação favorece a maior empresa do mercado.
  • O público vai se acomodar sem nenhuma emoção.
  • Se você fosse o patrão dessa empresa, melhor negociar logo com os trabalhadores.
  • Estamos falando de cerveja, ora essa, apenas um luxo que existe em nossas vidas.

Nunca soube de uma greve de distribuidores de cerveja, mas o exercício mental acima é tão óbvio em suas consequências que pode lançar luz em situações aparentemente muito distintas, mas que guardam similaridades fundamentais com nosso gedankenexperiment für bier.

Estamos na iminência de (mais) uma greve das IFES (Instituições Federais de Ensino Superior). As afirmações valem, em geral, tanto para Institutos como para Universidades, mas vou me referir exclusivamente às Universidades. Vou me restringir ainda mais, e tratar exclusivamente acerca da (possível) paralisação dos Docentes.

Do ponto de vista salarial a categoria vem acumulando perdas consideráveis que nunca foram recuperadas desde a década de 90. O salário de um professor doutor permite uma vida digna mas apertada, principalmente em grandes cidades, situando a família desse professor entre as classes C e B, a depender do número de filhos e do emprego dos outros membros da família. Considerando a perda sensível do valor de compra do salário nesse governo apenas, fica transparente a real necessidade de um ajuste significativo, um plano de valorização do salário com algum prazo.

Os professores hoje vivem malabarismos para sustentar o seu padrão de compra dos anos anteriores, aceitando uma miríade de funções que são ofertadas pelo MEC ou MCT que permitem alguma bolsa ou gratificação. Os professores mestres sofrem ainda mais e muitas vezes é mais conveniente para eles a iniciativa privada. Tudo isso acarreta a precarização das condições de trabalho.

O plano de carreira tem sofrido avanços mas há bastante discussão na comunidade a esse respeito e a atual versão não foi exatamente negociada.

A previdência é um capítulo à parte, todos anteveem a “expulsatória” com 70 anos (torcendo para que se amplie esse prazo) porque a aposentadoria dos docentes no novo regime é um acinte a dignidade do ser humano.

Existem alguns ganhos aqui e acolá no que se refere a condições de trabalho, mas a situação geral é bastante desgastante e os proventos cada vez mais são carcomidos pelo dragão da maldade.
Em uma linha: Existe motivo de sobra para reclamar.

A maneira usual de reclamar é a convocação sistemática de greves. A história das greves das IFES mostra uma grande ineficácia desse mecanismo: as greves duram muito tempo (no mínimo 1 mês) e os ganhos são escassos.

Existe motivo de sobra para reclamar, mas por que a greve das IFES fracassa?
A lógica de mercado é pervasiva.

Quanto se está na Universidade, ela se imiscui em todas as suas atividades e você vive inteiramente na Universidade. Isso acontece desde a vida de alunos de graduação e pós-graduação continuando na vida docente (a maioria dos docentes não teve outra experiência profissional além da docência). A Universidade federal parece um mundo, tem muita coisa, tem muita vida.... mas tem um mundo lá fora!

Existem cerca de 95 mil funções docentes nas IFES, ¼ das 360 mil funções docentes do país. Somos professores de 1,5 milhão de estudantes, apenas 15% das 10 milhões de matrículas no Ensino Superior, espalhados em todo o país.

15% é o Market Share das IFES, no exemplo da cerveja, nós somos a Kirin! Cada greve é a cessação da prestação de serviços de Educação para 1,5 milhão de estudantes, muito menos do que os consumidores de Baden Baden. Esse número é comparável a população da Zona Leste de São Paulo!
Alguns números podem colocar as coisas em perspectiva. Para uma greve é IMPRESCINDÍVEL que alguém se sinta prejudicado ou se solidarize e se mobilize. Se poucos professores de um pequeno quantitativo se mobilizam com poucos estudantes de outro pequeno grupo não temos nada, a não ser boatos! E faz parte da dinâmica social que não sejam as maiorias engajadas a estarem nas ruas.

E aqueles diretamente prejudicados? Podemos identifica-los apenas como os concluintes, 100 mil pessoas, 13% do total brasileiro, e a sua maioria está realizando estágio em algum lugar e portanto está imune a greve. Os efeitos da greve demoram entre um e dois semestres para aparecerem.

E você está negociando com um governo que investe R$ 12,5 bilhões do FIES, R$ 150 milhões no PROUNI e o orçamento de todas as IFES juntas é de R$ 33 bilhões. A agenda da Universidade Pública Gratuita e de Qualidade não vai ser atingida com greves, a lógica de mercado é pervasiva, as greves vão sempre agravar o quadro e diminuir o Market Share das IFES!

E a situação é ainda pior para as IFES. A educação superior brasileira é bastante minoritária, a despeito do aumento do número de matrículas. Do ponto de vista dos 200 milhões de habitantes do Brasil, fazer ensino superior é mais ou menos como beber Baden Baden: custa cinco vezes mais caro e você vai ficar bêbado do mesmo jeito!

Esse é o país em que quem possui um diploma são “eles”, quem possui um título de doutor, como muitos professores, são “eles”.  A greve de caminhoneiros em Paris faz mais sucesso no Jornal Nacional do que a greve de professores, não por qualquer suposta e oculta agenda de direita mas pelo óbvio motivo de que estradas interditadas são uma imagem, salas vazias não são! Comitês de Greve discutindo de braços dados com estudantes com palavras de ordem e latas são o cotidiano, não são imagens que marcam a população "lá fora”.

Os alunos da educação básica são 50 milhões. 2,3 milhões são concluintes todo ano. Ofertamos 5 milhões de vagas no sistema de Ensino Superior! Por um lado, estamos “do lado de fora”, pelos que se importam, somos uma porta aberta, ou seja, com esse número de vagas vale a lei de mercado, temos excesso de oferta no sistema.

O aumento das vagas nas IFES foi uma grande conquista para a sociedade brasileira. O ensino superior brasileiro no século XXI sofre uma revolução importante com imensas consequências, mas o efeito da democratização do acesso ainda não se fez presente.

Nossa sociedade valoriza mais o diploma do que a educação. O setor particular entrega a mercadoria no tempo certo e a baixo custo. Esse baixo custo para o cidadão é causado por subsídios governamentais. Ainda assim podemos comparar com o custo de um aluno do sistema das IFES, cerca de R$2.000,00 por mês e notar que o sistema federal é muito caro para a sociedade.

O sistema de educação superior é avaliado de diversas formas, as comparações entre as IES são possíveis. Com toda a discussão válida acerca dos métodos de avaliação, ainda assim, fica claro que a qualidade encontra-se dos dois lados da cerca, tanto quanto a má qualidade.

Fique claro, eu defendo a Universidade Pública e Gratuita no Brasil. E por isso eu sou contra qualquer movimento que contribua para enfraquecer sua posição. Sou contra a greve.

O setor público é responsável pelas Universidades, quase em sua totalidade. O sistema particular tem as faculdades e centros universitários que entregam o produto no prazo. A educação universitária é um produto gourmet de mercado restrito, como açafrão, trufas brancas, foie gras...

A Universidade é um altar para adorar, não para sacrificar, o conhecimento. Conhecemos os efeitos das greves:
  •          Movimento docente pouco mobilizado;
  •          Pautas exógenas a causa docente, de matiz ideológica forte;
  •          Aumento da evasão dos cursos;
  •          Aumento da retenção na reprogramação dos períodos;
  •          Diminuição da qualidade de ensino nos novos calendários com interrupção prolongada;
  •          Aumento do consumo de cerveja de grande parte do corpo docente e discente ;)

As Universidades passaram muitas décadas tentando explicar para a sociedade o caráter diverso do seu serviço, dizendo que a lógica produtivista não se aplica. Bem, a sociedade entendeu que a lógica produtivista não se aplica, o que os alunos recebem no cotidiano de suas aulas parece a eles pouco relacionado com o produto que almejam. Se permitimos 25% de falta na sua carga horária, se permitimos que passe com média cinco, se permitimos que nossas aulas possam durar 10 ou 15 minutos a menos por atrasos, acabamos ensinando que a maior parte do processo educacional depende pouco dos professores e mais do empenho dos alunos!

Observem que é verdade mesmo que o processo educacional está centrado no aluno, mas falhamos em demonstrar de maneira inequívoca a importância do profissional da educação nesse processo porque falhamos principalmente em demonstrar um compromisso ético.

O estudante universitário é uma minoria que talvez pudesse fazer a sociedade ver o que se passa na Universidade, mas ele sente que a greve não o afeta senão pelo seu tempo de conclusão de curso que pode aumentar em um período.

Estamos dispostos novamente a desorganizar o calendário acadêmico com o calendário civil? Estamos dispostos a prejudicar nossos clientes, mas também nossos amigos poucos com quem convivemos todos os dias? Teremos a empáfia de cruzar os braços mais uma vez, estender férias que beneficiam a produtividade acadêmica da pós-graduação, ainda mais mais mais minoritária no país, permitir que seja mais fácil frequentarmos congressos, simpósios, conferências, praias e bares?

Eu já ouvi frases como: “Não vou entrar numa federal porque quero me formar no tempo.”, Não foi uma vez, não.

O Brasil tem 7,2 milhões de empregadas domésticas. 76 vezes mais do que o número de docentes das IFES, que ganham próximo à um salário mínimo e atendem pouco mais de 5% dos domicílios brasileiros. Essa minoria teve acesso a direitos trabalhistas muito recentemente, imaginem o que aconteceria com uma greve de empregadas domésticas? Não imagino que alguém chegou a pensar que seria uma comoção nacional, mas mobilizaria mais público do que uma greve das IFES.

2100 palavras para dizer que considero a proposta de greve nas circunstâncias de hoje nociva, imoral e inútil do ponto de vista trabalhista.

A estratégia errada repetida mil vezes não vai subitamente funcionar.

O que é verdadeiramente necessário é compreender que o setor ligado a SeSU é importante como elemento indutor de políticas do governo e também como balão de ensaio. Muitos dos quadros que formulam as políticas vem do setor público, são nossos colegas. Não é razoável supor que se transformem em outras pessoas ao mudar de lado do balcão.

Se fosse pensar em uma manobra de impacto em vez de Greve, posso sugerir que todas as IFES removam seus docentes cedidos para funções públicas no executivo estadual ou federal. Uma outra manifestação, dessa vez do outro lado da cerca da lei, na linha de ciberataques aos sistemas do MEC ou INEP. Com a rede RNP seria muito difícil conseguir evitar isso sem deixar algumas cidades sem acesso à Internet! 

A proposta acima é uma bobagem, mas não machuca futuros como uma greve faria. Seja o que for, para se manifestar na democracia é importante uma certa bagagem, tem que ler Tocqueville, os autores da intangível escola dita de Frankfurt, Bordieu...

A despeito de todas as ironias desse texto, a despeito da dureza com que me referi ao movimento grevista acho que é nesse parágrafo que atingirei o clímax da insurreição. A única saída para a Educação Superior Pública brasileira é se colocar estrategicamente na agenda de Estado, sem agir como crianças birrentas com pouca mesada, mas como instituições protagonistas da formulação de políticas públicas – colocado de outra forma, o maior aliado da educação superior pública de qualidade é a ANDIFES, não o ANDES.

Pela Universidade Pública Brasileira
Pela garantia de Ensino Superior de Qualidade para a Sociedade Brasileira
Pelo melhor futuro para a Pesquisa de Qualidade

A Universidade não pode parar!

Luciano Barosi de Lemos
Campina Grande, 09 de Maio de 2015
(O Autor é Pernambucano, Bacharel e Doutor pela USP, Pós-doutorado na UNESP e teve experiências como professor na Educação Básica - ciclo 2 e Ensino Médio em São Paulo, foi professor substituto na UnB e professor  de instituições privadas em Brasília. Hoje é professor da UFCG e coloca aqui a sua opinião pessoal apenas)

Fontes do Texto:
Projeto de Lei Orçamentária Anual - PLOA 2014
Censo da Educação Superior - Sinopse Estatística - 2013
Cendo da Educação Básica - Sinopse Estatística - 2013
IBGE - Censo 2010


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