Eu sempre apreciei a arte de
fazer títulos da idade média e essa é uma excelente oportunidade para fazer a
referência.
Pretendo defender uma tese
deveras polêmica e normalmente sou bastante prolixo, dessa forma vou poupar o
leitor impaciente. Já apresentei publicamente uma versão simplificada dessa
tese em alguns fori de discussão, aqui eu pretendo completar o raciocínio e
qualificar o debate.
O professor não ganha mal, o professor ganha exatamente o que a
sociedade acha que seu trabalho vale, a complacência com que a população em
geral e a mídia em particular tratam os professores e os acontecimentos da vida
que envolvam um professor deixa clara uma visão errônea e preconceituosa a
respeito da profissão de educador, muitas vezes pela total incompreensão do que
o ato de educar significa, pelas experiências negativas experienciadas e mais
ainda pelas experiências parcialmente bem sucedidas. É o povo que foi exposto
formalmente a processos educativos formais em escolas e universidades que
consolida uma visão perniciosa ao negar ao professor a sua própria profissão,
desprofissionalizando a educação formal, cobrindo-a de significados distorcidos
e, principalmente, úteis para horizontes estreitos de uma classe média inculta,
nefastos para a cidadania plena de um grupo de pessoas condenadas a um lugar
subalterno na sociedade, intangível, não-declarado, subserviente. Os
professores são coniventes e cúmplices desse processo. Se a educação exprime um
de seus ideais com a construção de um cidadão autônomo, esse processo não pode
ser levado a cabo sem um professor protagonista, ainda que de uma maneira
especial e qualificada.
Vamos agora passear pelos fatos e
pela lógica. Do ponto de vista salarial, os profissionais da Educação Básica do
ciclo fundamental ganham algo entre R$ 1 mil a R$ 2 mil reais, incluindo a
maioria dos profissionais na iniciativa privada. Note que o Ensino Básico
brasileiro é majoritariamente público, apesar da maioria das pessoas com nível
superior não perceber isso porque tem os filhos estudando em escolas
particulares. Na verdade, isso apenas demonstra como são poucos os diplomados
do país! A não ser no sistema das escolas de alto desempenho, o mercado é
dominado pelas escolas públicas e a lógica do mercado determina os salários.
Argumento que o valor do salário dos professores da Educação Básica é
determinado essencialmente pelo piso salarial da rede pública.
No Ensino Médio acrescenta-se um
pouco e temos R$ 2 mil a R$ 3 mil reais, motivos iguais.
Muito? Pouco? Como salário
inicial com condições de trabalho adequadas, não é o pior dos mundos. Mas esse
não é o salário inicial, e é conseguido com complementação de jornada em várias
escolas, distantes entre si. Não há carreira definida e os incentivos são
bastante precários, havendo uma monstruosa pressão para formação continuada a
medida em que não há nenhum plano que permita aos professores terem tempo de
frequentar esses cursos e se capacitar.
No Ensino Superior a situação se
inverte e o sistema é dominado pela iniciativa privada que busca no professor
horista a sua solução, sem fornecer carreira. Na iniciativa pública temos uma
carreira – com alguns defeitos, dividida em vários níveis horizontais e
verticais (!) e um salário composto por um vencimento básico e vários outras
linhas no contracheque referentes a gratificações que nem sabe pra que e a
retribuição por titulação que compõe a maior parte do salário. O regime de
aposentadoria foi mudando, mudando, mudando e hoje é essencialmente idêntico ao
sistema de previdência do INSS, com o mesmo teto de aposentadoria (haha – muita
gente achava aqui que a aposentadoria seria integral?). Um professor Doutor
ganha cerca de R$ 8 mil reais em início de carreira. Início de carreira? Um
professor Doutor, por definição, não está no início de carreira, ele passou
pela capacitação de um mestrado (na maioria das vezes) e um doutorado.
Um profissional no mercado de
trabalho, em início de carreira e sem doutorado, ganha o equivalente.
Mas a
progressão do salário de professor é bem lenta e pouco acentuada.
Para mestres ou especialistas,
muitas vezes a iniciativa privada paga melhor.
Bem, esses são os valores que
afirmo que são baixos. A grande parte da população brasileira ganha menos do
que isso, mas devemos comparar as populações com o mesmo coorte estatístico. Os
professores tem diplomas de nível superior (ou deveriam ter) e portanto devem
ser comparados com essa micro população brasileira. Nesse grupo, professor
ganha muito pouco.
Para garantir dados estatísticos,
para fins de comparação, o censo IBGE 2011 indica um salário médio de R$
4.135,06 para portadores de diploma e R$ 1.294,70 para não diplomados.
Ainda falta que eu demonstre que
a sociedade acredita que ele mereça isso.
Um dos grandes pilares da
sociedade ocidental hodierna é a tolerância. Muitas vezes essa característica é
mal interpretada, tolerância significa o respeito ao que é diferente, àquilo
com o que não se concorda. É tomar para si a decisão de respeitar a existência
de algo que não se quer para si e considera-lo como igualmente válido. A
tolerância pressupõe a igualdade.
Seria assunto para outro texto
discutir as manifestações de tolerância e intolerância. Por hora fiquemos na
mente com a necessidade de igualdade de condições como pressuposto da tolerância.
Algo bastante diferente é a
complacência, a condescendência. Essa pressupõe a superioridade hierárquica,
moral ou de recursos.
É complacência com o sofrimento
de Abrãao que manifesta Ha’Shem ao eximi-lo do sacrifício de seu primogênito
Isaac. Manifestando a fé incondicional nos desígnios Abrãao se torna merecedor
da complacência.
“Perdõem, eles não sabem o que
fazem” é a complacência manifesta nos evangelhos.
Clitemnestra, exprimindo-se na
Elektra de Eurípedes, teria complacência com Agamenon de esse tivesse
sacrificado a filha Ifigênia pela cidade e não pela infiel Helena, considerando
torpe o motivo do assassinato termina por assassinar o rei atreu.
Como a sociedade é complacente
com os professores? Somos coitadinhos desvalorizados por uma entidade abstrata
chamada hipocritamente de Estado ou, ainda mais hipocritamente, de “sociedade
que não me inclui”. Fossem diferentes da sociedade todos que assim o dizem e
não saberia quem é a sociedade!
Admiramos os filhos dos outros
que fazem licenciaturas, coitadinhos, curso de pobre.
É preciso ter vocação para ser
professor, admiramos aqueles que ouviram o chamado para que sejam imolados no
altar de nossas próprias crianças.
Todos se revoltam com os baixos
salários dos professores da Educação Básica, e todos se revoltam com os altos
salários dos professores da Educação Superior. A caridade da população tem um
teto salarial e imagina que um deve sair do outro.
Todos esses fatos são apenas a
superfície e devem ser analisados a luz da imagem que o professor detém na
sociedade bem como de seu papel social, o que é consequência da noção geral do
que é educação.
Se professores fazem uma
manifestação, eles parecem estar certos, mesmo que não esteja ali como
professores, mas como vândalos ou como membros de um partido, são coitadinhos.
Se a manifestação é coibida com violência, a violência é vista como violência
contra os professores e isso parece pior.
Uma sociedade não deve aceitar a
violência excessiva contra qualquer cidadão, e deve exigir do estado todas as
medidas que o Estado Democrático de Direito tem a sua disposição. A polícia é
uma delas, seu uso é tão legítimo quanto a existência de escolas públicas. E
ambas precisam ser reempossadas pela população. (Não defendo de maneira alguma
os excessos demonstrados recentemente pela polícia no Paraná, simplesmente não
quero me estender sobre o assunto que tem mais camadas partidárias do que eu
desejo nesse texto)
Vamos permitir aos professores
que sejam cidadãos antes de serem professores?
Continuemos analisando cada nível
de escolaridade.
Uma mãe de classe média contrata
uma babá para cuidar de seu filho. Muitas vezes essa babá é na verdade uma
faxineira e ganha, quando muito, um salário mínimo. Demonstra-se assim que a
criança pequena é tão importante quanto o piso ou o banheiro da casa e as
habilidades importantes para a criança consistem em garantir-lhe o asseio.
Às favas com todo o conhecimento
de psicopedagogia, neurociência, neurofisiologia, linguística... basta que a
criança esteja limpinha. Depois de um período a criança vai ser entregue a uma
escola infantil. O que essa mãe espera da escola? (Para garantir a igualdade de
gênero, o pai é muitas vezes conivente, embora detenha menos poder sobre o
destino da cria).
A escola infantil é o lugar onde
a criança vai se socializar com outras crianças, comer e ficar limpinha. (Mais
ou menos como o parque, mas dessa vez os pais não precisam mais ir junto). Qual
a formação que se espera do professor da educação infantil? Acho que está
bastante óbvio!
Quando se descobre que o
professor de educação infantil tem um diploma... puro êxtase! Veja só, faz
todas as funções da empregada doméstica e ainda tem um diploma. Não sei para
que seria relevante esse diploma nesse caso, mas parece fazer sucesso. (O
motivo mais frequente que costumo ouvir é que “não fala muito errado”)
Assim roubamos a profissão de
professor da Educação Infantil reduzindo totalmente o seu significado. Esse
professor é um profissional desempenhando seu ofício, ofício para o qual
dedicou anos de estudo!
Na Educação Fundamental e Média
ocorre um outro fenômeno de desprofissionalização. As crianças devem frequentar
um ambiente escolar e muitas vezes não é do inteiro interesse de crianças e
adolescentes seguir a esse tipo de determinação. Ou seja, o público do
professor é geralmente um público que gostaria de não estar ali e a
justificativa de sua presença, no mais das vezes, é a determinação dos pais.
Os conteúdos são simples, grande
parte dos pais é capaz de ajudar os filhos sem problemas nessa fase. O
professor parece poder ser qualquer um. Embora os pais se esqueçam de que as
salas de aula tem entre 30 e 40 alunos e o professor não é o pai do aluno e
portanto não tem a imediata hierarquia para garantir a sua atenção.
O trabalho é muito difícil e
torna-se ainda mais difícil com as expectativas sobre ele. Nossa sociedade hoje
espera diplomas e certificados, não conhecimento. Espera boas notas,
independente do desempenho e do engajamento. Nossa sociedade coloca os pais em
posição de preponderância com relação aos professores, no que os filhos se
acostam com enorme facilidade, enquanto compete a escola a educação formal, mas
não só... a escola (e o professor em particular) deve garantir o aprendizado,
formar cidadãos, discutir diversidade, tolerância, respeito, orientação
vocacional, ser amigo, parceiro, bom profissional, orientação pedagógica,
sexual, intervenção familiar.... tudo isso sem que seja reconhecido como
detentor de um conhecimento próprio, autônomo, em sua área de atuação.
A história começou cedo para a
criança, e continua. A Educação Escolar é uma das educações necessárias, e não
substitui a educação familiar. É claro que se deve reconhecer algumas
dificuldades de ordem familiar e a comunidade escolar pode contribuir, mas
nunca substituir os pais. A escola não é um lugar onde os filhos ficam
guardados enquanto os pais trabalham, é mais do que isso, deve ser valorizada
como um templo de conhecimento e ter atuação contínua dos pais mediada pela
expertise dos professores.
O professor tem formação
específica de licenciatura, um currículo extenso que contempla muitas
importantes características para colaborar com a construção de uma sociedade
melhor, mas ele é um profissional que atua em seu ambiente de trabalho, a
escola. Um professor deve ter tempo para corrigir provas e preparar aulas no
ambiente de trabalho e ter o direito de repousar como todos os outros
profissionais que querem ficar com suas famílias nos finais de semana.
Seria bastante estranho para um
engenheiro que seu cliente resolvesse dizer como uma obra deve ser construída.
O engenheiro ouve o cliente, mas o projeto depende de sua expertise
profissional. Esse direito é negado aos professores, porque eles tem vocação.
É claro que todo mundo ter o
direito de ter mais ou menos interesse para algo, para humanidade, exatas,
artes, mas não basta a vocação para ser advogado, publicitário, engenheiro ou
médico, não basta vocação para ser professor.
Fui Coordenador Institucional do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência na UFCG por quatro
anos. O programa iniciou suas atividades em 2008 com 60 pessoas e hoje tem uma comunidade
de 600 envolvidos em todos os cursos de licenciatura da UFCG. A concepção do
programa permite um impacto significativo nos próprios cursos como um espaço
dialógico da atividade docente. Visitei 14 escolas da rede pública da Paraíba
para conversar com alunos, professores, licenciandos, diretores e professores
da UFCG.
A ideia principal era discutir o
papel do professor no século XXI. Entrevistei pessoas nos mais diversos níveis
de formação e o que mais se evidenciou foi
- Necessidade de conhecer o conteúdo
- Conhecimento metodológico
- Habilidade Interpessoais
- Comportamento Ético
Eu respeito todos esses
profissionais. Eles são importantes para a nossa sociedade e não são
coitadinhos, são batalhadores, competentes. A presença deles tem mudado um
pouco a realidade das Escolas em que atuam, porque estão dispostos a fazer um
bom trabalho.
O professor improvisado de uma
área na outra, o professor que se atrasa para iniciar as aulas ou termina mais
cedo, o professor que não prepara suas aulas para garantir a intencionalidade
do processo educacional, o professor que falta imotivadamente e que menospreza
o próprio trabalho.... esse professor é cúmplice da falência do sistema de
Ensino.
O professor ensina, de forma
planejada, motivada e intencional seus assuntos para que uma apropriação ocorra
no aluno. Existem técnicas, métodos e metodologias para analisar esse processo
mas a ação no outro que é esse apropriação do saber, uma reestruturação do
arcabouço simbólico do aprendiz não acontece de imediato. O trabalho deve ser
acompanhado e avaliado mas o sucesso não é garantido se não for criado um
vínculo de cumplicidade e necessidade, e mesmo assim o trabalho é árduo. O
produto do trabalho do professor é uma potencialidade na mente dos alunos. Esse
elemento elusivo é frágil na essência e pode apenas se fundamentar em um grande
rigor ético e a cumplicidade do estabelecimento escolar, dos alunos e da família.
Enquanto os professores fizerem
concessões éticas, enquanto sua profissão não for reconhecida como tal e não
como a profissão de guardiões dos filhos dos outros, nada poderá haver de
substancial na Educação em massa no Brasil.
Agora eu poderia começar a
descrever os problemas com a Educação Superior, como mestrados e doutorados
hoje são formas de subemprego mais do que oportunidades de capacitação
profissional, como as atividades docentes não são valorizadas, como os cursos
de formação de professores ainda tem muito o que avançar. Por ora isso não é
necessário e vamos encaminhar para o fecho desse longo artigo.
Termino com o assunto das greves,
remetendo a texto sobre as greves das IFES (A Cerveja e a Greve, abaixo nesse
blog) no que toca às Universidades. Quanto a Educação Básica, são 50 milhões de
matrículas, a greve dos professores é um incômodo, sem dúvida, por deixar de
cuidar dos filhos dos outros!
A greve de professores é
perniciosa porque rompe a tênue fímbria de contrato pedagógico que os
profissionais dedicados conseguem construir, impõe um processo de deseducação
em massa que só
colabora para uma visão da desprofissionalização do professor
que pode se fazer ausente e sua ausência pode não se fazer sentida.
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