domingo, 17 de maio de 2015

Sobre Como a Complacência da Sociedade com os Professores é Perniciosa

Eu sempre apreciei a arte de fazer títulos da idade média e essa é uma excelente oportunidade para fazer a referência.

Pretendo defender uma tese deveras polêmica e normalmente sou bastante prolixo, dessa forma vou poupar o leitor impaciente. Já apresentei publicamente uma versão simplificada dessa tese em alguns fori de discussão, aqui eu pretendo completar o raciocínio e qualificar o debate.

O professor não ganha mal, o professor ganha exatamente o que a sociedade acha que seu trabalho vale, a complacência com que a população em geral e a mídia em particular tratam os professores e os acontecimentos da vida que envolvam um professor deixa clara uma visão errônea e preconceituosa a respeito da profissão de educador, muitas vezes pela total incompreensão do que o ato de educar significa, pelas experiências negativas experienciadas e mais ainda pelas experiências parcialmente bem sucedidas. É o povo que foi exposto formalmente a processos educativos formais em escolas e universidades que consolida uma visão perniciosa ao negar ao professor a sua própria profissão, desprofissionalizando a educação formal, cobrindo-a de significados distorcidos e, principalmente, úteis para horizontes estreitos de uma classe média inculta, nefastos para a cidadania plena de um grupo de pessoas condenadas a um lugar subalterno na sociedade, intangível, não-declarado, subserviente. Os professores são coniventes e cúmplices desse processo. Se a educação exprime um de seus ideais com a construção de um cidadão autônomo, esse processo não pode ser levado a cabo sem um professor protagonista, ainda que de uma maneira especial e qualificada.


Vamos agora passear pelos fatos e pela lógica. Do ponto de vista salarial, os profissionais da Educação Básica do ciclo fundamental ganham algo entre R$ 1 mil a R$ 2 mil reais, incluindo a maioria dos profissionais na iniciativa privada. Note que o Ensino Básico brasileiro é majoritariamente público, apesar da maioria das pessoas com nível superior não perceber isso porque tem os filhos estudando em escolas particulares. Na verdade, isso apenas demonstra como são poucos os diplomados do país! A não ser no sistema das escolas de alto desempenho, o mercado é dominado pelas escolas públicas e a lógica do mercado determina os salários. Argumento que o valor do salário dos professores da Educação Básica é determinado essencialmente pelo piso salarial da rede pública.
No Ensino Médio acrescenta-se um pouco e temos R$ 2 mil a R$ 3 mil reais, motivos iguais.
Muito? Pouco? Como salário inicial com condições de trabalho adequadas, não é o pior dos mundos. Mas esse não é o salário inicial, e é conseguido com complementação de jornada em várias escolas, distantes entre si. Não há carreira definida e os incentivos são bastante precários, havendo uma monstruosa pressão para formação continuada a medida em que não há nenhum plano que permita aos professores terem tempo de frequentar esses cursos e se capacitar.

No Ensino Superior a situação se inverte e o sistema é dominado pela iniciativa privada que busca no professor horista a sua solução, sem fornecer carreira. Na iniciativa pública temos uma carreira – com alguns defeitos, dividida em vários níveis horizontais e verticais (!) e um salário composto por um vencimento básico e vários outras linhas no contracheque referentes a gratificações que nem sabe pra que e a retribuição por titulação que compõe a maior parte do salário. O regime de aposentadoria foi mudando, mudando, mudando e hoje é essencialmente idêntico ao sistema de previdência do INSS, com o mesmo teto de aposentadoria (haha – muita gente achava aqui que a aposentadoria seria integral?). Um professor Doutor ganha cerca de R$ 8 mil reais em início de carreira. Início de carreira? Um professor Doutor, por definição, não está no início de carreira, ele passou pela capacitação de um mestrado (na maioria das vezes) e um doutorado.

Um profissional no mercado de trabalho, em início de carreira e sem doutorado, ganha o equivalente. 

Mas a progressão do salário de professor é bem lenta e pouco acentuada.

Para mestres ou especialistas, muitas vezes a iniciativa privada paga melhor.

Bem, esses são os valores que afirmo que são baixos. A grande parte da população brasileira ganha menos do que isso, mas devemos comparar as populações com o mesmo coorte estatístico. Os professores tem diplomas de nível superior (ou deveriam ter) e portanto devem ser comparados com essa micro população brasileira. Nesse grupo, professor ganha muito pouco.

Para garantir dados estatísticos, para fins de comparação, o censo IBGE 2011 indica um salário médio de R$ 4.135,06 para portadores de diploma e R$ 1.294,70 para não diplomados.

Ainda falta que eu demonstre que a sociedade acredita que ele mereça isso.

Um dos grandes pilares da sociedade ocidental hodierna é a tolerância. Muitas vezes essa característica é mal interpretada, tolerância significa o respeito ao que é diferente, àquilo com o que não se concorda. É tomar para si a decisão de respeitar a existência de algo que não se quer para si e considera-lo como igualmente válido. A tolerância pressupõe a igualdade.

Seria assunto para outro texto discutir as manifestações de tolerância e intolerância. Por hora fiquemos na mente com a necessidade de igualdade de condições como pressuposto da tolerância.
Algo bastante diferente é a complacência, a condescendência. Essa pressupõe a superioridade hierárquica, moral ou de recursos.

É complacência com o sofrimento de Abrãao que manifesta Ha’Shem ao eximi-lo do sacrifício de seu primogênito Isaac. Manifestando a fé incondicional nos desígnios Abrãao se torna merecedor da complacência.

“Perdõem, eles não sabem o que fazem” é a complacência manifesta nos evangelhos.

Clitemnestra, exprimindo-se na Elektra de Eurípedes, teria complacência com Agamenon de esse tivesse sacrificado a filha Ifigênia pela cidade e não pela infiel Helena, considerando torpe o motivo do assassinato termina por assassinar o rei atreu.

Como a sociedade é complacente com os professores? Somos coitadinhos desvalorizados por uma entidade abstrata chamada hipocritamente de Estado ou, ainda mais hipocritamente, de “sociedade que não me inclui”. Fossem diferentes da sociedade todos que assim o dizem e não saberia quem é a sociedade!

Admiramos os filhos dos outros que fazem licenciaturas, coitadinhos, curso de pobre.

É preciso ter vocação para ser professor, admiramos aqueles que ouviram o chamado para que sejam imolados no altar de nossas próprias crianças.

Todos se revoltam com os baixos salários dos professores da Educação Básica, e todos se revoltam com os altos salários dos professores da Educação Superior. A caridade da população tem um teto salarial e imagina que um deve sair do outro.

Todos esses fatos são apenas a superfície e devem ser analisados a luz da imagem que o professor detém na sociedade bem como de seu papel social, o que é consequência da noção geral do que é educação.

Se professores fazem uma manifestação, eles parecem estar certos, mesmo que não esteja ali como professores, mas como vândalos ou como membros de um partido, são coitadinhos. Se a manifestação é coibida com violência, a violência é vista como violência contra os professores e isso parece pior.

Uma sociedade não deve aceitar a violência excessiva contra qualquer cidadão, e deve exigir do estado todas as medidas que o Estado Democrático de Direito tem a sua disposição. A polícia é uma delas, seu uso é tão legítimo quanto a existência de escolas públicas. E ambas precisam ser reempossadas pela população. (Não defendo de maneira alguma os excessos demonstrados recentemente pela polícia no Paraná, simplesmente não quero me estender sobre o assunto que tem mais camadas partidárias do que eu desejo nesse texto)

Vamos permitir aos professores que sejam cidadãos antes de serem professores?

Continuemos analisando cada nível de escolaridade.

Uma mãe de classe média contrata uma babá para cuidar de seu filho. Muitas vezes essa babá é na verdade uma faxineira e ganha, quando muito, um salário mínimo. Demonstra-se assim que a criança pequena é tão importante quanto o piso ou o banheiro da casa e as habilidades importantes para a criança consistem em garantir-lhe o asseio.

Às favas com todo o conhecimento de psicopedagogia, neurociência, neurofisiologia, linguística... basta que a criança esteja limpinha. Depois de um período a criança vai ser entregue a uma escola infantil. O que essa mãe espera da escola? (Para garantir a igualdade de gênero, o pai é muitas vezes conivente, embora detenha menos poder sobre o destino da cria).

A escola infantil é o lugar onde a criança vai se socializar com outras crianças, comer e ficar limpinha. (Mais ou menos como o parque, mas dessa vez os pais não precisam mais ir junto). Qual a formação que se espera do professor da educação infantil? Acho que está bastante óbvio!

Quando se descobre que o professor de educação infantil tem um diploma... puro êxtase! Veja só, faz todas as funções da empregada doméstica e ainda tem um diploma. Não sei para que seria relevante esse diploma nesse caso, mas parece fazer sucesso. (O motivo mais frequente que costumo ouvir é que “não fala muito errado”)

Assim roubamos a profissão de professor da Educação Infantil reduzindo totalmente o seu significado. Esse professor é um profissional desempenhando seu ofício, ofício para o qual dedicou anos de estudo!

Na Educação Fundamental e Média ocorre um outro fenômeno de desprofissionalização. As crianças devem frequentar um ambiente escolar e muitas vezes não é do inteiro interesse de crianças e adolescentes seguir a esse tipo de determinação. Ou seja, o público do professor é geralmente um público que gostaria de não estar ali e a justificativa de sua presença, no mais das vezes, é a determinação dos pais.

Os conteúdos são simples, grande parte dos pais é capaz de ajudar os filhos sem problemas nessa fase. O professor parece poder ser qualquer um. Embora os pais se esqueçam de que as salas de aula tem entre 30 e 40 alunos e o professor não é o pai do aluno e portanto não tem a imediata hierarquia para garantir a sua atenção.

O trabalho é muito difícil e torna-se ainda mais difícil com as expectativas sobre ele. Nossa sociedade hoje espera diplomas e certificados, não conhecimento. Espera boas notas, independente do desempenho e do engajamento. Nossa sociedade coloca os pais em posição de preponderância com relação aos professores, no que os filhos se acostam com enorme facilidade, enquanto compete a escola a educação formal, mas não só... a escola (e o professor em particular) deve garantir o aprendizado, formar cidadãos, discutir diversidade, tolerância, respeito, orientação vocacional, ser amigo, parceiro, bom profissional, orientação pedagógica, sexual, intervenção familiar.... tudo isso sem que seja reconhecido como detentor de um conhecimento próprio, autônomo, em sua área de atuação.

A história começou cedo para a criança, e continua. A Educação Escolar é uma das educações necessárias, e não substitui a educação familiar. É claro que se deve reconhecer algumas dificuldades de ordem familiar e a comunidade escolar pode contribuir, mas nunca substituir os pais. A escola não é um lugar onde os filhos ficam guardados enquanto os pais trabalham, é mais do que isso, deve ser valorizada como um templo de conhecimento e ter atuação contínua dos pais mediada pela expertise dos professores.

O professor tem formação específica de licenciatura, um currículo extenso que contempla muitas importantes características para colaborar com a construção de uma sociedade melhor, mas ele é um profissional que atua em seu ambiente de trabalho, a escola. Um professor deve ter tempo para corrigir provas e preparar aulas no ambiente de trabalho e ter o direito de repousar como todos os outros profissionais que querem ficar com suas famílias nos finais de semana.

Seria bastante estranho para um engenheiro que seu cliente resolvesse dizer como uma obra deve ser construída. O engenheiro ouve o cliente, mas o projeto depende de sua expertise profissional. Esse direito é negado aos professores, porque eles tem vocação.

É claro que todo mundo ter o direito de ter mais ou menos interesse para algo, para humanidade, exatas, artes, mas não basta a vocação para ser advogado, publicitário, engenheiro ou médico, não basta vocação para ser professor.

Fui Coordenador Institucional do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência na UFCG por quatro anos. O programa iniciou suas atividades em 2008 com 60 pessoas e hoje tem uma comunidade de 600 envolvidos em todos os cursos de licenciatura da UFCG. A concepção do programa permite um impacto significativo nos próprios cursos como um espaço dialógico da atividade docente. Visitei 14 escolas da rede pública da Paraíba para conversar com alunos, professores, licenciandos, diretores e professores da UFCG.

A ideia principal era discutir o papel do professor no século XXI. Entrevistei pessoas nos mais diversos níveis de formação e o que mais se evidenciou foi
  • Necessidade de conhecer o conteúdo
  • Conhecimento metodológico
  • Habilidade Interpessoais
  • Comportamento Ético
Durante essas entrevistas, fui testemunha de muitas histórias de sucesso e vitórias. Muitas narrativas de pessoas que eram desprezadas por fazerem um “curso de pobre” que aprenderam a se posicionar, pessoas com histórias de vida de superação, que aprenderam a valorizar a própria formação ao entender como articular seus conhecimentos no cotidiano. Muitos hoje são professores e ainda trabalham no projeto como Supervisores, outros estão fazendo mestrado. Pelo menos em um Estado pobre como a Paraíba conseguimos um grande sucesso.

Eu respeito todos esses profissionais. Eles são importantes para a nossa sociedade e não são coitadinhos, são batalhadores, competentes. A presença deles tem mudado um pouco a realidade das Escolas em que atuam, porque estão dispostos a fazer um bom trabalho.

O professor improvisado de uma área na outra, o professor que se atrasa para iniciar as aulas ou termina mais cedo, o professor que não prepara suas aulas para garantir a intencionalidade do processo educacional, o professor que falta imotivadamente e que menospreza o próprio trabalho.... esse professor é cúmplice da falência do sistema de Ensino.

O professor ensina, de forma planejada, motivada e intencional seus assuntos para que uma apropriação ocorra no aluno. Existem técnicas, métodos e metodologias para analisar esse processo mas a ação no outro que é esse apropriação do saber, uma reestruturação do arcabouço simbólico do aprendiz não acontece de imediato. O trabalho deve ser acompanhado e avaliado mas o sucesso não é garantido se não for criado um vínculo de cumplicidade e necessidade, e mesmo assim o trabalho é árduo. O produto do trabalho do professor é uma potencialidade na mente dos alunos. Esse elemento elusivo é frágil na essência e pode apenas se fundamentar em um grande rigor ético e a cumplicidade do estabelecimento escolar, dos alunos e da família.

Enquanto os professores fizerem concessões éticas, enquanto sua profissão não for reconhecida como tal e não como a profissão de guardiões dos filhos dos outros, nada poderá haver de substancial na Educação em massa no Brasil.

Agora eu poderia começar a descrever os problemas com a Educação Superior, como mestrados e doutorados hoje são formas de subemprego mais do que oportunidades de capacitação profissional, como as atividades docentes não são valorizadas, como os cursos de formação de professores ainda tem muito o que avançar. Por ora isso não é necessário e vamos encaminhar para o fecho desse longo artigo.

Termino com o assunto das greves, remetendo a texto sobre as greves das IFES (A Cerveja e a Greve, abaixo nesse blog) no que toca às Universidades. Quanto a Educação Básica, são 50 milhões de matrículas, a greve dos professores é um incômodo, sem dúvida, por deixar de cuidar dos filhos dos outros!


A greve de professores é perniciosa porque rompe a tênue fímbria de contrato pedagógico que os profissionais dedicados conseguem construir, impõe um processo de deseducação em massa que só 
colabora para uma visão da desprofissionalização do professor que pode se fazer ausente e sua ausência pode não se fazer sentida.

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