sábado, 15 de fevereiro de 2014

O Medalhão Moderno na Cultura Digital



Em fabuloso conto de Machado de Assis o pai de um personagem ensina ao filho o segredo do sucesso da vida em sociedade. Com seu agudo senso de humor, Machado descreve o perfeito idiota social, que jamais teria opinião própria, fugiria com horror da possibilidade de uma ideia própria para apenas verter “senso comum”, manchetes sem polêmicas de jornais de sociedade, incapaz de desagradar a quem quer que fosse. Esse nobre ideal social foi chamado de “Medalhão”.

Machado de Assis utilizava de uma ironia para lançar um pensamento sobre a cultura de salão prevalente a época. Charles Dickens sugeriu que as crianças pobres deveriam ser comidas – literalmente – pela classe rica, como forma de combate às péssimas situações de vida das classes mais baixas da Inglaterra. No estilo delicioso de Dickens existem muitos mais absurdos irônicos, que tinham por objetivo demonstrar exatamente o contrário do que se escrevia.

A ironia hoje é de mau tom! No discurso social é considerada uma agressão, anátema maior do que esbravejar ou gritar palavras de ordem! A ironia fina e sutil da escola inglesa passa simplesmente desapercebida, na maior das vezes, mas essa também, se denunciada leva aos mesmos efeitos maléficos da ironia mais aberta.


A ironia morreu. Banida do discurso escrito ou falado, logo se esconderão seus livros e envenenarão suas páginas para que não se prolifere de novo (acho que a nota de pé de página pode ser muito distante para o leitor, portanto esclareço aqui mesmo a referência, trata-se de O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Para aqueles que não estão dispostos a ler o livro de 500 páginas, tem uma versão em filme com o Sean Connery, os últimos 15 minutos explicam a nota!).

Nesse momento já estou abaixo do link “mais” de qualquer mídia eletrônica, como o facebook, portanto os leitores que chegaram até aqui, todos os 5, talvez, são extraordinários. A grande maioria parou no primeiro parágrafo e concluiu que escrevo sobre uma medalha de uso da internet, outros tantos podem até me citar para dizer que esse é um artigo sobre a uniformidade de ideias na Cultura Digital e que traço um paralelo disso com o conto de Machado. Chegamos finalmente ao assunto desse ensaio: essa última classe de leitores! Como eu naturalmente temo pela minha integridade digital e física, espero que a possibilidade de retorno deles seja pequena!

A sociedade machadiana retratava de maneira fidedigna o seu ambiente histórico e cultural, notadamente no que se refere as conversas de salão da burguesia brasileira. Esse salão não desapareceu, ele se mudou e se democratizou. Não é apenas a burguesia que tem conversas de salão, também as classes baixas acedem aos salões e as vezes alguns desses salões tem alguma intersecção. Estamos a falar das rodas de conversas assíncronas que se estabelecem na internet com ênfase nos mecanismos facebook e twitter.

Como parece ser um traço distintivo do brasileiro médio gostar de público, vidas são expostas no que fazem e pensam num ritmo frenético diferenciado de outros países que tem uma natureza mais reservada, mas se observarmos (e nós observamos) o que acontece entre todas as fotos de praias, mulheres, homens, comidas, carros, pessoas tirando fotos de si mesmos em qualquer lugar, vemos que existem textos de diversos tamanhos. A maioria do uso brasileiro desses mecanismos indica o uso como um tipo de diário eletrônico aberto ou livro de apontamentos, junto com um massivo clipping das mais diversas fontes de informação.

Esse continuo “streaming” de informação é assoberbante. É claro que é poderoso, é claro que é democratizante, é claro que é inevitável e crescente. Cada um dos falantes desse discurso é um usuário digital com direitos plenos nessa sociedade? Não há centralização, não há governo, segundo um dos criadores do Firefox, não existe uma cultura digital, mas existem várias! Se pensamos apenas no contexto do uso de mídias sociais podemos definir uma cultura digital e mais ainda, uma cidadania digital, com limites éticos bastante precisos. Como passar de usuário para cidadão?

O principal desafio em qualquer caminho que leve a cidadania é o conhecimento. Na cultura da internet existe muita informação, mas é muito difícil de extrair o conhecimento dessa informação. Essa ideia não é nova e vem sendo repetida por qualquer pessoa que pense seriamente a sociedade moderna. Vou tentar contribuir um pouco mais para o entendimento dessa ideia com duas imagens.

Quando pedimos ao garçom para trazer depressa aquela média que não seja requentada, temos um estado inicial de dois recipientes, um com café e outro com leite, claramente discerníveis. Quando nos chega a média no balcão temos um copo de líquido com cor caramelada e não podemos mais distinguir onde está o café e onde está o leite. Este é um exemplo de um sistema inicial de baixa entropia evoluindo para um sistema de alta entropia, sistema em que perdemos a informação precisa de onde está o café e onde está o leite. É possível calcular a probabilidade do copo com média se separar em café e leite exatamente, mas essa é uma probabilidade absolutamente negligível.

Um padrão moderno de criptografia é conhecido como criptografia RSA. Sua senha de banco, por exemplo, quando transmitida pelo sistema, se converte em um sistema de alta informação, os números exatos de sua senha, para um padrão de alta entropia, constituídos de números obtidos por um algoritmo relativamente simples mas com uma inversão impossível para qualquer padrão computacional existente. Colocando de forma clara, conhecendo a informação codificada (que trafega muitas vezes “aberta” na rede) não é possível, por tentativa e erro, descobrir qual é a senha original. Essa é uma tarefa tão improvável quando a média se separar em café e leite.

O sistema de codificação consegue codificar e extrair o conhecimento da informação que recebe, para isso é utilizado uma chave pública e uma chave privada. No que concerna a nós nesse texto o importante não é o algoritmo, mas a existência de uma chave pública e de uma chave privada. É necessária a publicação de alguma coisa, um protocolo e um sistema de acreditação, responsabilidade do detentor da chave privada. Assinaturas eletrônicas, certificações, senhas, compras online.... um mundo de coisas segue esse esquema para averiguar o conteúdo da mensagem original.

Argumento que é precisamente o mesmo mecanismo que permite aos usuários de redes sociais se apropriar (ou não) de conhecimento extraído do excesso de informação. Cada usuário se baseia em um mecanismo próprio de certificação de suas fontes.

Em minhas aulas, frequentemente sugiro a pesquisa em fontes de internet, com ênfase especial à wikipedia, sempre digo para utilizarem a versão em língua inglesa, não os verbetes da edição brasileira, por serem de muito mais confiabilidade. Não quero dizer que falantes de língua inglesa são melhores ou saibam mais coisas, apenas que a wikipedia inglesa tem o acesso de um número ordens de grandeza superior ao da brasileira e, sendo um ambiente colaborativo, a chance de mútua acreditação e solidificação de um verbete seja maior. São sempre melhores os verbetes mais antigos do que os verbetes sobre assuntos muito contemporâneos. A Wikipedia incorpora inerentemente um mecanismo de acreditação por ser aberta a edição de todos, inclusive de experts voluntários, além da existência de um comitê editorial que se preocupa em verificar alguns parâmetros de aceitabilidade.

Cada usuário de redes sociais naturalmente cria o seu próprio sistema para poder inteligir o que se passa, nesse seu sistema estão expostas suas opiniões pessoais de forma implícita. Assim cada usuário escolhe os veículos de mídia de onde fazem clipping, os amigos que consideram respeitáveis para fazer clipping sem que tenham lido o conteúdo, aqueles amigos ou recursos que utilizam quando querem fazer uma argumentação defendendo seus pontos de vista em uma lista de comentários – também muitas vezes sem ter lido os argumentos. E assim cada usuário acaba se encastelando em uma rede de “amigos confiáveis”, explícita ou não, em que todos essencialmente concordam uns com os outros e reforçam sua confiança do que quer que digam. Extingue-se a tensão do contraditório e em cada uma dessas microredes surgem os medalhões digitais a citar para seus pares tudo aquilo no que todos concordam.

O breve conto de Machado mostra como é difícil a tarefa de ser um medalhão, e essa dificuldade também se mostra hodiernamente. A sociedade machadiana era uma sociedade essencialmente conservado, enquanto a sociedade moderna está sob tensões mais rápidas de mudanças e o Zeitgeist aponta sempre para a mudança. A propósito Zeitgeist também é o nome de um movimento moderno, fundado essencialmente na internet, que prega uma mudança contínua de maneira pouco definida, baseada essencialmente em um filme disponível no youtube produzido pelo idealizador do movimento – tive o prazer de conhecer o movimento e seu idealizador em um bar em Salvador, ilustrando como a Internet não se faz apenas de movimentos virtuais, mas de movimentos que se concretizam materialmente em nossas vidas.

O que acontece quando a capacidade de argumentar praticamente se esvai, pelo contínuo exercício de concordar internamente ao seu grupo, e vários desses grupos entram em contato com sistemas de referência ideológicos ou mentais são mutuamente exclusivos ou, se não essencialmente contraditórios?

Alguns leitores talvez tenham ficado tentados a responder: a Barbárie! Nesse caso, solicito que repense suas ideias ou se identifique com os sujeitos dessa discussão. Não há governo central como moderador, cada grupo é um estado em si mesmo e fecharam-se os canais diplomáticos, que pressupõe, por óbvio, a via da argumentação. “Então é a Guerra”, hum, ainda não!

Diante de uma situação fora de seu sistema de conceitos usuais todos os humanos procuram retornar para a segurança do seu sistema de valores, efeito idêntico aquele de um viajante que costumeiramente “reconhece” alguns rostos familiares. Caso a situação seja inconciliável a solução ideal é a negação da existência (comum, por exemplo, na ocasião da morte de entes queridos). Essa negação pode ter que ser expressa de maneira veemente se a existência que se quer negar se faz presente reiteradamente.

Evidentemente não é possível negar a existência de uma pessoa que se manifesta contrariamente a você (como você não pode, em posse de seu  juízo, negar que alguém morreu), e o caminho é tirar a legitimidade para o pertencimento da arena do discurso. Se o embate é um embate de discurso, basta que se casse o discurso daquele contestante. Entre em cena o rótulo, em vários formas e disfarces, do mal. Em poder argumentativo o medalhão digital não pode aceitar um argumento como errado, porque isso exige a manobra intelectual de um sistema de valores que desconhece, esse argumento ganha um rótulo: o mal, fascista, nazista, neoliberal, rede globo, petista, comunista....

Nos anos iniciais da Internet foi enunciada uma “Lei” chamada “Lei de Godwin”, que afirmava que quem fizesse uma analogia a Hitler ao Nazismo em uma discussão teria automaticamente perdido a discussão por demonstrar que havia ficado sem argumentos. Esse raciocínio se aplica ainda para Europeus e Americanos que, tendo vivenciado muito de perto os horrores do Holocausto, consideram “Nazista” uma palavra tão terrível até para seus inimigos. Nos brasileiros não temos esse pudor, banalizamos o Nazismo e o Holocausto, obviamente porque somos incapazes de verdadeiramente compreender o grau de horror contido nessas palavras.

Será que o brasileiro então não tem limites? É claro que os tem, mas seus conjuntos de valores construídos coletivamente são mais recentes, e não utilizamos – NO DISCURSO – rótulos como Negro, Mulato, Pedófilo, Aleijado... como argumentos. Relativizamos males colossais mas ainda temos um conjunto, em construção, de valoração do Bem e do Mal. A existência dessa civilidade é garantia de uma possibilidade de coexistência dos grupos sem que haja a necessidade de aniquilação do outro.

A situação é ruim do ponto de vista do discurso, mas há alguma luz e alguma esperança. Contudo se cria uma tensão interessante para o escritor (no sentido amplo da internet). O espaço de 120 caracteres do twitter, o espaço do item “MAIS” do facebook impõem ao escritor o conhecimento de que é necessário certo cuidado na construção das manchetes, uma responsabilidade do escritor quanto ao entendimento de seu texto – que eu propositalmente deixei de lado – que não é a responsabilidade civil especial de uma classe superior, apenas um cuidado que aquele que quer ser compreendido deve aprender, se tiver a intenção de minorar o seu uso equivocado ou fora do contexto, se quiser evitar a proliferação de citações de Einstein de frases que nunca disse, mas também se quiser evitar a citação de seu próprio texto sem frases que nunca disse.

Contribuímos assim para a vitalidade do discurso e para a tolerância. Esse ambiente virtual caricaturesco garante, finalmente, que nos momentos em que o virtual e o real se encontram, em praças, ruas, manifestações e no dia-a-dia, exista apenas uma minoria violenta, parasitas de qualquer mundo real ou virtual e defensores do aniquilamento, que sempre haverão de existir, preservamos a maioria, silenciosa ou manifestante, que preserva a vida humana. Essa é a tarefa do escritor desde que o livro atingiu o público, e que permanece sem livro, mas permanece lido ainda que, frequentemente, só nas Manchetes.

Luciano Barosi (Brasília – 12/Fev/2014)

(Nota do Autor: Texto inspirado em citações de um texto de professor da UFCG sobre a adesão à EBSERH no facebook e em texto do Magnífico Reitor da UFCG acerca da leitura rasa dos textos da lei da EBSERH feita pelo minoritário movimento contrário à adesão.)

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