Em fabuloso conto de Machado de
Assis o pai de um personagem ensina ao filho o segredo do sucesso da vida em
sociedade. Com seu agudo senso de humor, Machado descreve o perfeito idiota
social, que jamais teria opinião própria, fugiria com horror da possibilidade
de uma ideia própria para apenas verter “senso comum”, manchetes sem polêmicas
de jornais de sociedade, incapaz de desagradar a quem quer que fosse. Esse
nobre ideal social foi chamado de “Medalhão”.
Machado de Assis utilizava de uma
ironia para lançar um pensamento sobre a cultura de salão prevalente a época.
Charles Dickens sugeriu que as crianças pobres deveriam ser comidas –
literalmente – pela classe rica, como forma de combate às péssimas situações de
vida das classes mais baixas da Inglaterra. No estilo delicioso de Dickens
existem muitos mais absurdos irônicos, que tinham por objetivo demonstrar
exatamente o contrário do que se escrevia.
A ironia hoje é de mau tom! No
discurso social é considerada uma agressão, anátema maior do que esbravejar ou
gritar palavras de ordem! A ironia fina e sutil da escola inglesa passa
simplesmente desapercebida, na maior das vezes, mas essa também, se denunciada
leva aos mesmos efeitos maléficos da ironia mais aberta.
A ironia morreu. Banida do
discurso escrito ou falado, logo se esconderão seus livros e envenenarão suas
páginas para que não se prolifere de novo (acho que a nota de pé de página pode
ser muito distante para o leitor, portanto esclareço aqui mesmo a referência,
trata-se de O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Para aqueles que não estão
dispostos a ler o livro de 500 páginas, tem uma versão em filme com o Sean
Connery, os últimos 15 minutos explicam a nota!).
Nesse momento já estou abaixo do
link “mais” de qualquer mídia eletrônica, como o facebook, portanto os leitores
que chegaram até aqui, todos os 5, talvez, são extraordinários. A grande
maioria parou no primeiro parágrafo e concluiu que escrevo sobre uma medalha de
uso da internet, outros tantos podem até me citar para dizer que esse é um
artigo sobre a uniformidade de ideias na Cultura Digital e que traço um
paralelo disso com o conto de Machado. Chegamos finalmente ao assunto desse
ensaio: essa última classe de leitores! Como eu naturalmente temo pela minha
integridade digital e física, espero que a possibilidade de retorno deles seja
pequena!
A sociedade machadiana retratava
de maneira fidedigna o seu ambiente histórico e cultural, notadamente no que se
refere as conversas de salão da burguesia brasileira. Esse salão não
desapareceu, ele se mudou e se democratizou. Não é apenas a burguesia que tem
conversas de salão, também as classes baixas acedem aos salões e as vezes
alguns desses salões tem alguma intersecção. Estamos a falar das rodas de
conversas assíncronas que se estabelecem na internet com ênfase nos mecanismos
facebook e twitter.
Como parece ser um traço
distintivo do brasileiro médio gostar de público, vidas são expostas no que
fazem e pensam num ritmo frenético diferenciado de outros países que tem uma
natureza mais reservada, mas se observarmos (e nós observamos) o que acontece
entre todas as fotos de praias, mulheres, homens, comidas, carros, pessoas
tirando fotos de si mesmos em qualquer lugar, vemos que existem textos de
diversos tamanhos. A maioria do uso brasileiro desses mecanismos indica o uso
como um tipo de diário eletrônico aberto ou livro de apontamentos, junto com um
massivo clipping das mais diversas fontes de informação.
Esse continuo “streaming” de
informação é assoberbante. É claro que é poderoso, é claro que é
democratizante, é claro que é inevitável e crescente. Cada um dos falantes
desse discurso é um usuário digital com direitos plenos nessa sociedade? Não há
centralização, não há governo, segundo um dos criadores do Firefox, não existe
uma cultura digital, mas existem várias! Se pensamos apenas no contexto do uso
de mídias sociais podemos definir uma cultura digital e mais ainda, uma
cidadania digital, com limites éticos bastante precisos. Como passar de usuário
para cidadão?
O principal desafio em qualquer
caminho que leve a cidadania é o conhecimento. Na cultura da internet existe
muita informação, mas é muito difícil de extrair o conhecimento dessa
informação. Essa ideia não é nova e vem sendo repetida por qualquer pessoa que
pense seriamente a sociedade moderna. Vou tentar contribuir um pouco mais para
o entendimento dessa ideia com duas imagens.
Quando pedimos ao garçom para
trazer depressa aquela média que não seja requentada, temos um estado inicial
de dois recipientes, um com café e outro com leite, claramente discerníveis.
Quando nos chega a média no balcão temos um copo de líquido com cor caramelada
e não podemos mais distinguir onde está o café e onde está o leite. Este é um
exemplo de um sistema inicial de baixa entropia evoluindo para um sistema de
alta entropia, sistema em que perdemos a informação precisa de onde está o café
e onde está o leite. É possível calcular a probabilidade do copo com média se
separar em café e leite exatamente, mas essa é uma probabilidade absolutamente
negligível.
Um padrão moderno de criptografia
é conhecido como criptografia RSA. Sua senha de banco, por exemplo, quando
transmitida pelo sistema, se converte em um sistema de alta informação, os
números exatos de sua senha, para um padrão de alta entropia, constituídos de
números obtidos por um algoritmo relativamente simples mas com uma inversão
impossível para qualquer padrão computacional existente. Colocando de forma
clara, conhecendo a informação codificada (que trafega muitas vezes “aberta” na
rede) não é possível, por tentativa e erro, descobrir qual é a senha original. Essa
é uma tarefa tão improvável quando a média se separar em café e leite.
O sistema de codificação consegue
codificar e extrair o conhecimento da informação que recebe, para isso é
utilizado uma chave pública e uma chave privada. No que concerna a nós nesse
texto o importante não é o algoritmo, mas a existência de uma chave pública e
de uma chave privada. É necessária a publicação de alguma coisa, um protocolo e
um sistema de acreditação, responsabilidade do detentor da chave privada.
Assinaturas eletrônicas, certificações, senhas, compras online.... um mundo de
coisas segue esse esquema para averiguar o conteúdo da mensagem original.
Argumento que é precisamente o
mesmo mecanismo que permite aos usuários de redes sociais se apropriar (ou não)
de conhecimento extraído do excesso de informação. Cada usuário se baseia em um
mecanismo próprio de certificação de suas fontes.
Em minhas aulas, frequentemente
sugiro a pesquisa em fontes de internet, com ênfase especial à wikipedia,
sempre digo para utilizarem a versão em língua inglesa, não os verbetes da
edição brasileira, por serem de muito mais confiabilidade. Não quero dizer que
falantes de língua inglesa são melhores ou saibam mais coisas, apenas que a
wikipedia inglesa tem o acesso de um número ordens de grandeza superior ao da
brasileira e, sendo um ambiente colaborativo, a chance de mútua acreditação e
solidificação de um verbete seja maior. São sempre melhores os verbetes mais
antigos do que os verbetes sobre assuntos muito contemporâneos. A Wikipedia
incorpora inerentemente um mecanismo de acreditação por ser aberta a edição de
todos, inclusive de experts voluntários, além da existência de um comitê
editorial que se preocupa em verificar alguns parâmetros de aceitabilidade.
Cada usuário de redes sociais
naturalmente cria o seu próprio sistema para poder inteligir o que se passa,
nesse seu sistema estão expostas suas opiniões pessoais de forma implícita.
Assim cada usuário escolhe os veículos de mídia de onde fazem clipping, os
amigos que consideram respeitáveis para fazer clipping sem que tenham lido o
conteúdo, aqueles amigos ou recursos que utilizam quando querem fazer uma
argumentação defendendo seus pontos de vista em uma lista de comentários –
também muitas vezes sem ter lido os argumentos. E assim cada usuário acaba se
encastelando em uma rede de “amigos confiáveis”, explícita ou não, em que todos
essencialmente concordam uns com os outros e reforçam sua confiança do que quer
que digam. Extingue-se a tensão do contraditório e em cada uma dessas
microredes surgem os medalhões digitais a citar para seus pares tudo aquilo no
que todos concordam.
O breve conto de Machado mostra
como é difícil a tarefa de ser um medalhão, e essa dificuldade também se mostra
hodiernamente. A sociedade machadiana era uma sociedade essencialmente
conservado, enquanto a sociedade moderna está sob tensões mais rápidas de
mudanças e o Zeitgeist aponta sempre para a mudança. A propósito Zeitgeist também
é o nome de um movimento moderno, fundado essencialmente na internet, que prega
uma mudança contínua de maneira pouco definida, baseada essencialmente em um
filme disponível no youtube produzido pelo idealizador do movimento – tive o
prazer de conhecer o movimento e seu idealizador em um bar em Salvador,
ilustrando como a Internet não se faz apenas de movimentos virtuais, mas de
movimentos que se concretizam materialmente em nossas vidas.
O que acontece quando a
capacidade de argumentar praticamente se esvai, pelo contínuo exercício de
concordar internamente ao seu grupo, e vários desses grupos entram em contato
com sistemas de referência ideológicos ou mentais são mutuamente exclusivos ou,
se não essencialmente contraditórios?
Alguns leitores talvez tenham
ficado tentados a responder: a Barbárie! Nesse caso, solicito que repense suas
ideias ou se identifique com os sujeitos dessa discussão. Não há governo
central como moderador, cada grupo é um estado em si mesmo e fecharam-se os
canais diplomáticos, que pressupõe, por óbvio, a via da argumentação. “Então é
a Guerra”, hum, ainda não!
Diante de uma situação fora de
seu sistema de conceitos usuais todos os humanos procuram retornar para a
segurança do seu sistema de valores, efeito idêntico aquele de um viajante que
costumeiramente “reconhece” alguns rostos familiares. Caso a situação seja
inconciliável a solução ideal é a negação da existência (comum, por exemplo, na
ocasião da morte de entes queridos). Essa negação pode ter que ser expressa de
maneira veemente se a existência que se quer negar se faz presente
reiteradamente.
Evidentemente não é possível
negar a existência de uma pessoa que se manifesta contrariamente a você (como
você não pode, em posse de seu juízo,
negar que alguém morreu), e o caminho é tirar a legitimidade para o
pertencimento da arena do discurso. Se o embate é um embate de discurso, basta
que se casse o discurso daquele contestante. Entre em cena o rótulo, em vários
formas e disfarces, do mal. Em poder argumentativo o medalhão digital não pode
aceitar um argumento como errado, porque isso exige a manobra intelectual de um
sistema de valores que desconhece, esse argumento ganha um rótulo: o mal,
fascista, nazista, neoliberal, rede globo, petista, comunista....
Nos anos iniciais da Internet foi
enunciada uma “Lei” chamada “Lei de Godwin”, que afirmava que quem fizesse uma
analogia a Hitler ao Nazismo em uma discussão teria automaticamente perdido a
discussão por demonstrar que havia ficado sem argumentos. Esse raciocínio se
aplica ainda para Europeus e Americanos que, tendo vivenciado muito de perto os
horrores do Holocausto, consideram “Nazista” uma palavra tão terrível até para
seus inimigos. Nos brasileiros não temos esse pudor, banalizamos o Nazismo e o
Holocausto, obviamente porque somos incapazes de verdadeiramente compreender o
grau de horror contido nessas palavras.
Será que o brasileiro então não
tem limites? É claro que os tem, mas seus conjuntos de valores construídos
coletivamente são mais recentes, e não utilizamos – NO DISCURSO – rótulos como
Negro, Mulato, Pedófilo, Aleijado... como argumentos. Relativizamos males
colossais mas ainda temos um conjunto, em construção, de valoração do Bem e do
Mal. A existência dessa civilidade é garantia de uma possibilidade de
coexistência dos grupos sem que haja a necessidade de aniquilação do outro.
A situação é ruim do ponto de
vista do discurso, mas há alguma luz e alguma esperança. Contudo se cria uma
tensão interessante para o escritor (no sentido amplo da internet). O espaço de
120 caracteres do twitter, o espaço do item “MAIS” do facebook impõem ao
escritor o conhecimento de que é necessário certo cuidado na construção das
manchetes, uma responsabilidade do escritor quanto ao entendimento de seu texto
– que eu propositalmente deixei de lado – que não é a responsabilidade civil
especial de uma classe superior, apenas um cuidado que aquele que quer ser
compreendido deve aprender, se tiver a intenção de minorar o seu uso equivocado
ou fora do contexto, se quiser evitar a proliferação de citações de Einstein de
frases que nunca disse, mas também se quiser evitar a citação de seu próprio
texto sem frases que nunca disse.
Contribuímos assim para a
vitalidade do discurso e para a tolerância. Esse ambiente virtual caricaturesco
garante, finalmente, que nos momentos em que o virtual e o real se encontram,
em praças, ruas, manifestações e no dia-a-dia, exista apenas uma minoria
violenta, parasitas de qualquer mundo real ou virtual e defensores do
aniquilamento, que sempre haverão de existir, preservamos a maioria, silenciosa
ou manifestante, que preserva a vida humana. Essa é a tarefa do escritor desde
que o livro atingiu o público, e que permanece sem livro, mas permanece lido
ainda que, frequentemente, só nas Manchetes.
Luciano Barosi (Brasília –
12/Fev/2014)
(Nota do Autor: Texto inspirado
em citações de um texto de professor da UFCG sobre a adesão à EBSERH no
facebook e em texto do Magnífico Reitor da UFCG acerca da leitura rasa dos
textos da lei da EBSERH feita pelo minoritário movimento contrário à adesão.)
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